Educação a Distância como Movimento Ativo de Saberes e Justiça Social: democratização do ensino ou reforço das desigualdades?
Educação a Distância como Movimento Ativo de Saberes e Justiça Social: democratização do ensino ou reforço das desigualdades?
Patrícia Paiva Gonçalves Bispo[1]
RESUMO: Este artigo, fundamentado na tese de doutorado de Patrícia Paiva Gonçalves Bispo, analisa a Educação a Distância (EaD) como uma modalidade que, ao mesmo tempo em que promove a democratização do acesso ao ensino superior no Brasil, enfrenta limitações que podem perpetuar desigualdades sociais. O curso de Pedagogia, que lidera as matrículas na EaD, é utilizado como eixo central da análise. A partir das contribuições teóricas de Pierre Bourdieu, José Carlos Libâneo e Zygmunt Bauman, discute-se como o capital cultural, o habitus e a lógica mercadológica influenciam a qualidade da formação docente. Por fim, apresentam-se reflexões críticas e caminhos para que a EaD possa cumprir seu potencial transformador.
1. Introdução
Nas últimas décadas, a Educação a Distância (EaD) tem ganhado destaque no cenário educacional brasileiro como uma modalidade capaz de democratizar o acesso ao ensino superior. Com a evolução das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), a EaD ampliou significativamente sua abrangência, atendendo a uma parcela da população que, devido a barreiras geográficas e econômicas, não tinha acesso a instituições de ensino tradicionais. Entretanto, a massificação dessa modalidade também trouxe desafios, principalmente no que diz respeito à qualidade da formação e ao impacto na equidade educacional.
O curso de Pedagogia é um exemplo emblemático dessa dualidade. Liderando as matrículas na modalidade EaD, ele representa uma alternativa viável para estudantes de classes sociais menos favorecidas. Contudo, essa escolha está frequentemente associada ao baixo custo das mensalidades, reflexo direto da lógica mercadológica que rege grande parte das instituições privadas. Surge, então, um questionamento central: a EaD contribui efetivamente para a justiça social ou reforça desigualdades já existentes?
Este artigo, fundamentado nos resultados da tese de doutorado da autora, busca explorar essa problemática, utilizando as contribuições teóricas de Pierre Bourdieu, José Carlos Libâneo e Zygmunt Bauman. A partir da análise de como o capital cultural e o habitus influenciam o acesso e a permanência dos alunos na EaD, discute-se o impacto do neoliberalismo na construção de currículos e na formação de professores. Por fim, propõe-se uma reflexão crítica sobre como a EaD pode ser redesenhada para promover a justiça social sem comprometer a qualidade educacional.
2. Educação e Justiça Social: Perspectivas Teóricas
A relação entre educação e justiça social tem sido amplamente debatida por teóricos que buscam compreender como as práticas educacionais podem reduzir ou perpetuar desigualdades. Para Pierre Bourdieu, o sistema educacional atua frequentemente como um mecanismo de reprodução social, legitimando as desigualdades por meio do capital cultural e do habitus dos indivíduos. Em seu conceito, capital cultural refere-se ao conjunto de habilidades, conhecimentos e disposições adquiridos por um indivíduo em função de seu contexto social e familiar. No caso da EaD, observa-se que os alunos oriundos de classes sociais menos favorecidas geralmente possuem menor capital cultural, o que pode limitar seu desempenho e sucesso acadêmico.
Libâneo (2010) reforça essa perspectiva ao destacar que a formação docente deve transcender o domínio técnico e abarcar uma reflexão crítica sobre as desigualdades estruturais que impactam o ensino. Para ele, a educação é um espaço de transformação, mas isso só é possível quando se reconhecem as barreiras impostas pelo contexto socioeconômico e cultural dos alunos. Na EaD, esses desafios são amplificados pela distância física e pela menor interação entre professores e estudantes, dificultando a mediação pedagógica e a superação de déficits de formação básica.
Zygmunt Bauman, por sua vez, oferece uma análise sobre a sociedade contemporânea marcada pela liquidez das relações sociais e econômicas. No contexto educacional, essa liquidez se reflete na flexibilização do ensino e na expansão de modalidades como a EaD, que, embora promovam acesso, também estão sujeitas às dinâmicas do mercado. Para Bauman, a lógica neoliberal que permeia a sociedade atual tende a transformar a educação em mercadoria, priorizando a eficiência e a produtividade em detrimento da qualidade e da equidade.
Essas reflexões teóricas fornecem uma base para compreender os desafios e as contradições da EaD. Enquanto modalidade, ela possui um potencial significativo para democratizar o acesso ao ensino, mas enfrenta limitações estruturais que dificultam a promoção de uma justiça social efetiva.
2.1. Educação a Distância no Brasil: Avanços e Limitações
A Educação a Distância (EaD) no Brasil tem se destacado como uma estratégia de democratização do ensino superior, especialmente em um país de dimensões continentais e marcantes desigualdades regionais. Dados recentes mostram que a modalidade EaD é responsável por 65,2% das matrículas no ensino superior no Brasil, com um crescimento expressivo entre 2012 e 2022. Essa expansão tem possibilitado o acesso ao ensino superior para populações antes excluídas, particularmente aquelas residentes em regiões geograficamente isoladas ou em contextos socioeconômicos desfavoráveis.
No entanto, o crescimento da EaD não se deu sem desafios. Em grande parte das instituições privadas, a lógica mercadológica predomina, e o curso de Pedagogia é frequentemente utilizado como um "produto de entrada", atraindo estudantes pelo baixo custo das mensalidades. Conforme evidenciado na tese da autora, as mensalidades acessíveis, que podem variar de R$99,00 a R$130,00, tornam o curso atrativo para estudantes de classes sociais menos favorecidas, mas muitas vezes à custa de uma formação que não corresponde plenamente às exigências profissionais.
Adicionalmente, o perfil dos estudantes de Pedagogia na modalidade EaD revela barreiras significativas, como deficiências na formação básica e a necessidade de conciliar trabalho e estudos. Esses fatores contribuem para altos índices de evasão e para o comprometimento da qualidade da formação.
3. Pedagogia EaD e o Paradoxo da Democratização
O curso de Pedagogia, líder em matrículas na modalidade de Educação a Distância (EaD) no Brasil, desempenha um papel central no debate sobre justiça social no ensino superior. De acordo com a tese da autora, com mais de 821 mil estudantes matriculados em 2022, sendo 650 mil na modalidade EaD, o curso representa uma importante porta de entrada para o ensino superior, especialmente para indivíduos de classes sociais menos favorecidas. Essa popularidade, no entanto, revela um paradoxo: enquanto democratiza o acesso, também perpetua desigualdades estruturais.
Um dos fatores determinantes para a alta adesão ao curso é a acessibilidade econômica. Instituições privadas frequentemente utilizam o curso de Pedagogia como estratégia de mercado, oferecendo mensalidades significativamente mais baixas em comparação a outros cursos. Essa política atrai estudantes, mas frequentemente resulta em investimentos limitados em infraestrutura, corpo docente e na qualidade do currículo, comprometendo a formação oferecida.
Além disso, o perfil socioeconômico dos estudantes matriculados nesse curso é um indicador importante de sua vulnerabilidade acadêmica. Conforme destacado na tese, muitos ingressam com deficiências educacionais herdadas de um sistema básico de ensino precário, o que dificulta a superação de desafios no nível superior. A necessidade de conciliar trabalho, estudo e responsabilidades familiares também é um agravante, contribuindo para altas taxas de evasão e comprometendo a experiência acadêmica.
Sob a ótica de Pierre Bourdieu, essas dinâmicas podem ser interpretadas como uma reprodução do habitus social. Em vez de funcionar como um instrumento de mobilidade, a educação reforça desigualdades, legitimando diferenças de capital cultural entre os estudantes. No caso da EaD, essa reprodução ocorre tanto pela configuração curricular quanto pelas condições limitadas de interação e suporte pedagógico.
A lógica mercadológica, analisada sob a perspectiva de Zygmunt Bauman, aprofunda essas contradições. A transformação da educação em mercadoria subordina os interesses acadêmicos às demandas de mercado, priorizando retenção de alunos e sustentabilidade financeira em detrimento da qualidade da formação. Esse fenômeno evidencia o desafio central da modalidade EaD: equilibrar acessibilidade com a garantia de uma educação integral e emancipadora.
4. Reflexões Críticas: EaD como Ferramenta de Transformação Social?
Apesar das limitações estruturais e pedagógicas, a EaD permanece uma modalidade com grande potencial transformador, especialmente em países com desigualdades tão marcantes como o Brasil. Para que esse potencial seja plenamente realizado, algumas mudanças estruturais e políticas são necessárias, como apontado na tese.
Primeiramente, a reformulação dos currículos se apresenta como uma prioridade. O currículo deve considerar as demandas regionais e os perfis dos estudantes, promovendo uma formação interdisciplinar e conectada às realidades sociais e culturais. A introdução de conteúdos que promovam o pensamento crítico e a capacidade de adaptação é fundamental para preparar os futuros pedagogos para os desafios da profissão.
Outro aspecto crucial é o fortalecimento da mediação pedagógica. Estratégias que ampliem a interação entre professores e estudantes, mesmo em ambientes virtuais, podem contribuir para um aprendizado mais significativo e colaborativo. A utilização de tecnologias educacionais inovadoras e a capacitação contínua dos docentes são caminhos promissores.
Além disso, é imprescindível que as políticas públicas acompanhem a expansão da EaD. A regulação das instituições, especialmente privadas, deve garantir que a democratização do acesso seja acompanhada pela manutenção da qualidade. Adoção de avaliações regulares, supervisão dos currículos e apoio financeiro para estudantes de baixa renda são algumas ações necessárias para mitigar desigualdades.
Por fim, é essencial que as instituições reconheçam a educação como um direito e não apenas como uma mercadoria. Sob a perspectiva da justiça social, como discutido por Bourdieu e Bauman, a educação deve ser um instrumento de transformação social, promovendo equidade e emancipação. Para isso, é necessário um compromisso coletivo de gestores, educadores e formuladores de políticas.
5. Considerações Finais
Este artigo, fundamentado na tese de doutorado da autora, analisou as contribuições e limitações da Educação a Distância (EaD) no contexto brasileiro, com foco no curso de Pedagogia. A discussão revelou que, embora a modalidade EaD amplie o acesso ao ensino superior, ela também enfrenta desafios estruturais e mercadológicos que perpetuam desigualdades sociais.
A análise teórica baseada em Pierre Bourdieu, José Carlos Libâneo e Zygmunt Bauman evidenciou como a lógica neoliberal e as diferenças de capital cultural influenciam a formação docente na modalidade EaD. Esses fatores reforçam o paradoxo da democratização versus a perpetuação das desigualdades.
Apesar disso, a EaD continua sendo uma ferramenta valiosa para a inclusão social, desde que acompanhada de políticas públicas e práticas institucionais que garantam a qualidade da formação. Reformulações curriculares, fortalecimento da mediação pedagógica e investimento em infraestrutura são estratégias imprescindíveis para que a EaD cumpra seu papel como promotora da justiça social.
Este estudo reafirma a importância de superar a visão mercadológica da EaD, promovendo-a como um espaço de formação crítica e emancipadora. Espera-se que as reflexões apresentadas subsidiem novas pesquisas e inspirem práticas educacionais que contribuam para um ensino superior mais inclusivo e equitativo no Brasil.
6. Referências
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BOURDIEU, Pierre. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975.
LIBÂNEO, José Carlos. Pedagogia e pedagogos, para quê?. São Paulo: Cortez, 2010.
BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Censo da Educação Superior 2022. Brasília: MEC, 2023. Disponível em: https://www.gov.br/inep. Acesso em: 22 nov. 2024.
BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de Pedagogia. Ministério da Educação, Conselho Nacional de Educação, 2006.
GONÇALVES BISPO, Patrícia Paiva. Educação a Distância e a Formação Docente: desafios e possibilidades no contexto da justiça social. Tese (Doutorado). Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2024.
[1] Doutora em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, com mestrado em Educação (UNICID) e especializações em EaD (USP). Possui formações em Turismo, História e Pedagogia. Atua como Diretora Acadêmica da Faculdade Focus, Diretora Geral da Faculdade Intesp e Diretora Acadêmica do Grupo i9, além de prestar consultoria educacional para diversas instituições. Tem experiência em gestão do ensino superior, com foco em regulação, metodologias de ensino, desenvolvimento discente, projetos sociais e atividades extensionistas.