A Escuta Especializada e o Depoimento Especial no Processo Penal Brasileiro: desafios da produção probatória e da proteção integral de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual
A Escuta Especializada e o Depoimento Especial no Processo Penal Brasileiro: desafios da produção probatória e da proteção integral de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual
Alan Fernandes dos Santos[1]
RESUMO: O presente artigo analisa a tensão existente entre a necessidade de produção probatória no processo penal brasileiro e a proteção integral de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, à luz da lei 13.431/2017 e do decreto 9.603/2018. Examina-se a distinção conceitual e procedimental entre a escuta especializada (ee), voltada à proteção social e provimento de cuidados pela rede de proteção, e o depoimento especial (de), destinado à produção de prova judicial. Aborda-se a problemática da revitimização institucional, os desafios de implementação dos institutos, a ausência de capacitação profissional e a desarticulação da rede intersetorial. Conclusivamente, demonstra-se que a conciliação entre prova e proteção exige respeito estrito às finalidades legais de cada procedimento, fortalecimento da rede de proteção, capacitação continuada, pactuação de fluxos intersetoriais e utilização subsidiária do de, buscando-se provas por outros meios, conforme determina o art. 22 da lei 13.431/2017.
PALAVRAS-CHAVE: Revitimização; Institucional; Cuidado; Produção probatória; Processo legal.
ABSTRACT: This article analyzes the tension between the need for evidence production in Brazilian criminal proceedings and the comprehensive protection of children and adolescents who are victims of sexual violence, in light of Law 13,431/2017 and Decree 9,603/2018. It examines the conceptual and procedural distinction between specialized hearings (ee), aimed at social protection and the provision of care by the protection network, and special testimony (de), intended for the production of judicial evidence. It addresses the problem of institutional revictimization, the challenges of implementing the institutions, the lack of professional training, and the lack of coordination within the intersectoral network. In conclusion, it demonstrates that the reconciliation between evidence and protection requires strict respect for the legal purposes of each procedure, strengthening of the protection network, ongoing training, agreement on intersectoral flows, and subsidiary use of de, seeking evidence by other means, as determined by Article 22 of Law 13.431/2017.
KEY WORDS: Revictimization. Institutional. Care. Evidence production. Legal proceedings.
1. Introdução
A violência sexual contra crianças e adolescentes constitui fenômeno criminológico de extrema gravidade, com incidência alarmante no Brasil. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2025, foram registrados 87.545 casos de estupro e estupro de vulnerável em 2024, representando recorde histórico. Desses, parcela significativa envolve vítimas menores de 14 anos, submetidas a violência sexual perpetrada, em 67,9% dos casos, por agressores do próprio núcleo familiar.
A persecução penal desses crimes enfrenta desafio probatório singular, pois diferentemente de outros delitos, os crimes sexuais praticados contra vulneráveis ocorrem, frequentemente, sem testemunhas, em ambiente privado, sem deixar vestígios físicos duradouros, e com dinâmica de silenciamento da vítima mediante ameaças, manipulação afetiva ou coação moral.
Nesse contexto probatório adverso, a palavra da vítima assume, historicamente, papel central e, por vezes, exclusivo como elemento de convicção judicial. A jurisprudência consolidada reconhece que, nos crimes contra a dignidade sexual, a palavra da vítima possui especial relevância, ante a clandestinidade com que, em regra, são praticados. A Súmula 593 do STJ vai além, estabeleceu que "o crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente", consagrando a presunção absoluta de vulnerabilidade.
Concomitantemente a essa evolução jurisprudencial, o ordenamento jurídico brasileiro inaugurou, por meio da Lei nº 13.431/2017 e do Decreto nº 9.603/2018, um sistema normativo específico voltado à prevenção e repressão da revitimização de crianças e adolescentes. Nesse contexto, a legislação instituiu o Depoimento Especial (DE), que consiste em um procedimento de oitiva, realizado em ambiente acolhedor e conduzido por profissional capacitado. O instituto exige a aplicação de técnicas de entrevista investigativa e gravação audiovisual obrigatória, em estrita observância aos princípios da proteção integral (art. 8º, Lei 13.431/17; arts. 11, 12, 20-27, Decreto 9.603/18).
Entretanto, a Lei nº 13.431/2017 impôs desafios operacionais ao sistema de justiça. Ao passo que o art. 11, §2º, determina a irrepetibilidade da oitiva (salvo estrita necessidade e anuência), o art. 22 exige o esgotamento de outras vias investigativas para evitar que a palavra da vítima seja o único lastro probatório. Essa arquitetura normativa evidencia uma colisão de interesses: a demanda por produção de prova para a condenação versus a garantia de não revitimização da criança ou adolescente.
Emerge, assim, o seguinte problema de pesquisa: Como conciliar, no âmbito do processo penal brasileiro, a necessidade de produção probatória mediante a oitiva de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual com a garantia constitucional de proteção integral e não revitimização estabelecida pela Lei 13.431/2017?
O presente artigo tem como objetivo geral analisar criticamente a problemática da produção probatória no processo penal envolvendo vítimas crianças e adolescentes de violência sexual, investigando os limites e possibilidades do Depoimento Especial, a aplicação do art. 22 da Lei 13.431/17, e propondo diretrizes hermenêuticas e operacionais para a conciliação entre prova e proteção.
Especificamente, o estudo busca examinar a especificidade probatória dos crimes sexuais contra vulneráveis e a relevância da palavra da vítima, bem como analisar a natureza jurídica e os limites do Depoimento Especial. Em seguida, problematiza-se a irrepetibilidade da oitiva e a produção antecipada de prova sob a ótica do contraditório, investigando a aplicabilidade prática do art. 22 da Lei nº 13.431/17. Por fim, após analisar a jurisprudência dos Tribunais Superiores sobre o tema, o trabalho visa propor critérios técnico-jurídicos para a decisão acerca da realização do Depoimento Especial nos casos concretos.
Para o desenvolvimento deste estudo, adotou-se o método hipotético-dedutivo, operacionalizado por meio de revisão bibliográfica e documental de abordagem qualitativa. O levantamento de dados abrangeu a legislação pátria, com ênfase na Lei nº 13.431/2017 e no Decreto nº 9.603/2018, bem como a jurisprudência atualizada do Superior Tribunal de Justiça (STJ), selecionada a partir de repositórios oficiais. A fundamentação teórica baseou-se em doutrina especializada nas áreas de Direito Processual Penal e Criminologia, priorizando obras que dialogam com o sistema de garantias e a proteção integral de vulneráveis.
A relevância do estudo justifica-se pela atualidade, complexidade e repercussão prática do tema. A implementação da Lei 13.431/2017 impõe aos operadores do Direito (magistrados, promotores, defensores, delegados) e aos profissionais da rede de proteção o desafio de compatibilizar imperativos aparentemente contraditórios: punir eficazmente os agressores sem revitimizar a vítima. A compreensão adequada dessa tensão, e a construção de soluções dogmaticamente fundamentadas e constitucionalmente conformes, são conditio sinequa non para a efetivação simultânea da justiça criminal e da proteção dos direitos da criança e do adolescente.
2. Desenvolvimento
2.1 A prova no processo penal e a especificidade dos crimes sexuais contra vulneráveis
A prova atua como instrumento de reconstrução histórica no processo, constituindo o conjunto de elementos aptos a demonstrar a veracidade de um fato relevante. Segundo Lopes Jr. (2021), são justamente "os meios através dos quais se fará essa reconstrução do fato passado". Não obstante o caráter polissêmico do vocábulo (Dezem, 2025), o ordenamento pátrio orienta-se pelo princípio do livre convencimento motivado, nos termos do art. 155 do CPP:
Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas. (BRASIL, 1941, com redação dada pela Lei 11.690/2008, grifo nosso).
O referido postulado assegura ao julgador autonomia na apreciação do acervo probatório, afastando, via de regra, o sistema da prova tarifada. Há, todavia, exceções legais, a exemplo da indispensabilidade do exame pericial nos delitos transeuntes (art. 158, CPP). Em contrapartida, impõe-se o dever inafastável de motivar racionalmente o convencimento, o que blinda o processo contra o subjetivismo e o arbítrio.
O Brasil adota o sistema da persuasão racional do juiz, também chamado de livre convencimento motivado, em que o juiz é livre para formar seu convencimento, valorando as provas que constam nos autos, mas com o dever de fundamentar, de explicar, de justificar o porquê de ter decidido dessa ou daquela maneira. É um sistema misto, pois combina a liberdade de valoração (rechaçando a prova tarifada) com o dever de motivação (afastando a íntima convicção) (Lopes Júnior, 2020, p. 481).
O art. 156 do CPP estabelece os poderes instrutórios do juiz, permitindo-lhe, de ofício, determinar a produção de provas que entender necessárias, desde que respeitados os limites do contraditório e da imparcialidade. Esse dispositivo foi objeto de intenso debate doutrinário, com parte da doutrina (garantista) sustentando sua incompatibilidade com o sistema acusatório (CPP, art. 3º-A, incluído pela Lei 13.964/2019 - "Pacote Anticrime"); outra parte (mais tradicional) defendendo sua constitucionalidade, desde que exercido com parcimônia, para suprir lacunas probatórias essenciais à descoberta da verdade processual.
A instrução probatória nos crimes contra a dignidade sexual de vulneráveis reveste-se de singularidades. Sob a ótica multidisciplinar de Furniss (1993), destaca-se a "síndrome do segredo", mecanismo pelo qual o agressor — geralmente figura de referência para a criança — assegura o silêncio através de coação ou manipulação da realidade. Tal contexto reverbera diretamente na colheita da prova, manifestando-se através: (i) da revelação tardia (delay in disclosure); (ii) da narrativa fragmentada e progressiva, que evolui da minimização para a descrição integral da violência; e (iii) da retratação, compreendida aqui não como mentira, mas como sintoma da ambivalência afetiva e do trauma.
Sob o prisma da prova material, crimes sexuais contra vulneráveis frequentemente não deixam vestígios físicos perenes. Embora o exame de corpo de delito seja indispensável quando há rastro (art. 158, CPP), sua conclusão nem sempre é definitiva. Isso ocorre porque, em atos libidinosos diversos da conjunção carnal, a ausência de lesões genitais ou anais é comum. Mesmo nos casos de penetração, a rápida cicatrização e a existência de himens complacentes podem mascarar a ruptura. Ademais, a cronicidade dos abusos e o lapso temporal entre o último ato e a perícia reduzem drasticamente a probabilidade de detecção de vestígios (CHILDHOOD BRASIL; MDHC, 2023)
Quanto à prova testemunhal, crimes sexuais ocorrem, tipicamente, na clandestinidade, sem testemunhas oculares. Eventuais testemunhas são indiretas, relatando apenas mudanças de comportamento da vítima, reproduzindo relatos dela, presenciando o contexto de convivência abusiva, mas não o ato sexual em si. A palavra da vítima, portanto, torna-se, em muitos casos, o único elemento probatório direto sobre a autoria e materialidade do fato.
A partir disso a jurisprudência dos Tribunais Superiores reconhece essa especificidade. O STJ pacificou o entendimento de que "nos crimes contra a dignidade sexual, a palavra da vítima possui especial relevância" (Superior Tribunal de Justiça STJ- AgRg no AgRg no AREsp 2157131 CE 2022/0197964-5).
Nos crimes sexuais (estupro, importunação sexual etc.), que geralmente são cometidos na clandestinidade (longe dos olhos de testemunhas), a palavra da vítima assume especial relevância probatória, mormente quando corroborada por outros elementos de prova (v.g., laudo pericial, mensagens trocadas com o acusado, testemunhas indiretas). Não se trata de dar valor absoluto ao seu depoimento, mas de reconhecer que, em certas circunstâncias, pode ser o único elemento direto de prova disponível, sendo suficiente para a condenação se for firme, coerente e não desmentido pelo restante do acervo probatório (Lima, 2020, p. 865).
Não se trata de atribuir valor probatório absoluto à palavra da vítima, mas de reconhecer que, quando isolada como única prova direta, ela pode, se firme, coerente, harmônica com as demais circunstâncias dos autos, e não contraditada por outras provas robustas, fundamentar decreto condenatório, desde que observados os demais requisitos.
2.2 O depoimento especial e escuta especializada como meio de prova: natureza jurídica, validade e limites
A distinção entre Escuta Especializada e Depoimento Especial é nevrálgica, e sua incompreensão prática acarreta consequências deletérias ao processo penal. A confusão entre os institutos gera distorções na atuação da rede intersetorial, levando profissionais do cuidado a realizarem escutas investigativas — invadindo a esfera da persecução penal e causando revitimização. Simultaneamente, observa-se órgãos de segurança e justiça delegando indevidamente à rede de proteção a responsabilidade pela 'confirmação' da violência. Tal cenário culmina na multiplicação desnecessária de oitivas, violando frontalmente o princípio da irrepetibilidade.
2.2.1 Escuta especializada e depoimento especial: definições, natureza e distinções conceituais
Nos termos do artigo 7º da Lei nº 13.431/2017, a Escuta Especializada é o procedimento de entrevista conduzido por órgãos da rede de proteção (saúde, assistência, educação). Sua finalidade precípua é o acompanhamento da vítima, devendo o relato limitar-se ao estritamente necessário para o provimento de cuidados, distinguindo-se, portanto, da finalidade investigativa.
O Decreto 9.603/2018, em seu artigo 19, aprofunda e esclarece a definição:
Art. 19. A escuta especializada é o procedimento realizado pelos órgãos da rede de proteção nos campos da educação, da saúde, da assistência social, da segurança pública e dos direitos humanos, com o objetivo de assegurar o acompanhamento da vítima ou da testemunha de violência, para a superação das consequências da violação sofrida, limitado ao estritamente necessáriopara ocumprimento da finalidade de proteção social e de provimento de cuidados. (BRASIL, 2018, grifo nosso).
O Depoimento Especial é definido pelo artigo 8º da Lei 13.431/2017 como "o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária" (BRASIL, 2017). O Decreto 9.603/2018, em seu artigo 22, esclarece que o DE "será realizado em local apropriado e acolhedor, com a finalidade de produzir prova para o processo de investigação ou de responsabilização" (BRASIL, 2018).
O traço distintivo reside na natureza jurídica e na finalidade. A EE possui caráter eminentemente assistencial (proteger e cuidar), ao passo que o DE possui natureza instrumental, voltado à instrução probatória. O desvirtuamento dessas funções representa um equívoco técnico grave, capaz de gerar a revitimização institucional da criança ou adolescente.
Positivado pela Lei n. 13.431/2017, o depoimento especial, espécie de escuta protetiva 1, ingressa em sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, alterando a Lei n. 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). (Madeira, 2022)
O Depoimento Especial, instituído pela Lei 13.431/2017, não é, tecnicamente, um novo meio de prova, visto que o CPP, em seus artigos 202 a 225, já previa a oitiva de testemunhas. Trata-se de modalidade especial de coleta de prova testemunhal, com rito procedimental diferenciado, destinado a crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência (BRASIL, 2017, art. 8º).
2.2.2 O procedimento do depoimento especial
A natureza jurídica do Depoimento Especial (DE) é de prova testemunhal qualificada, submetida a rigorosos requisitos formais e procedimentais com o escopo de compatibilizar a busca pela verdade processual com a doutrina da proteção integral. O rito, minuciosamente regulamentado no art. 12 da Lei nº 13.431/2017 e nos arts. 20 a 27 do Decreto nº 9.603/2018, exige que a oitiva seja conduzida por profissional especializado em entrevista forense. Esse facilitador atua como elo técnico entre o magistrado e a criança, devendo possuir formação específica em protocolos reconhecidos de entrevista investigativa, a exemplo do Protocolo NICHD ou do Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense (PBEF).
A dinâmica procedimental inicia-se obrigatoriamente com o esclarecimento dos direitos e o planejamento da participação da vítima, privilegiando-se, na sequência, a narrativa livre com intervenção mínima do entrevistador. As perguntas complementares, formuladas pelas partes e pelo magistrado na sala de audiência, submetem-se ao crivo judicial e são transmitidas via ponto eletrônico ao facilitador. Cabe a este reformulá-las, adaptando a linguagem ao estágio de desenvolvimento da criança, antes de dirigi-las ao depoente. Todo o ato é transmitido em tempo real para a sala de audiência e gravado em sistema audiovisual, integrando os autos como prova documental.
Ademais, o sistema normativo impõe vedações absolutas visando à blindagem psíquica da vítima: proíbe-se a acareação e qualquer contato, ainda que visual, com o suposto agressor, tramitando o feito em segredo de justiça. Respeitadas tais balizas, o Depoimento Especial goza de plena validade probatória, produzido sob o crivo do contraditório diferido. Todavia, vigora a regra da irrepetibilidade (art. 11), que veda a reiteração da oitiva, salvo se demonstrada a imprescindibilidade da medida e mediante expressa concordância da vítima ou de seu representante legal, consolidando sua natureza de prova antecipada.
2.2.3 A obrigatoriedade do procedimento e o regime de nulidades
A redação do caput do art. 11 da Lei 13.431/2017, conjugada com o art. 8º e com o art. 12, evidencia que o legislador estabeleceu o Depoimento Especial como procedimento obrigatório para a oitiva de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência no âmbito dos processos judiciais, policiais ou administrativos. A obrigatoriedade, contudo, não é absoluta. A própria lei estabelece exceções e condições de flexibilização.
A norma prevê ainda uma ressalva de ordem temporal. A locução "sempre que possível", insculpida no caput do art. 11, denota que a realização do DE em sede de produção antecipada, embora prioritária, comporta exceções. O legislador conferiu margem para adaptação caso a medida se mostre inexequível diante das particularidades do caso concreto.
Ainda também prevê ainda uma salvaguarda subjetiva no §2º do artigo 11. Trata-se da irrepetibilidade condicionada, que subordina qualquer nova inquirição a dois fatores simultâneos: a justificativa de imprescindibilidade técnica e a anuência expressa da vítima ou de seu representante. Essa construção legal implica que, uma vez realizado o Depoimento Especial, vigora a presunção de irrepetibilidade, somente afastada se respeitada a autonomia da criança ou adolescente em não ser revitimizada.
Por fim, o dispositivo legal estabelece ainda critérios materiais de aplicação cogente. Determina-se que o Depoimento Especial seja realizado, obrigatoriamente, em sede de produção antecipada de prova judicial sempre que a vítima for menor de sete anos ou se tratar de crime de violência sexual (art. 11, §1º). Diante de tais hipóteses taxativas, a realização do ato em momento processual diverso viola o devido processo legal específico.
Portanto, a obrigatoriedade do DE refere-se ao procedimento técnico, a forma da oitiva, não à necessidade de oitiva em si. Ou seja, se a autoridade competente decidir ouvir a criança ou adolescente, essa oitiva deve, obrigatoriamente, seguir o procedimento do DE (art. 12, Lei 13.431/17; arts. 20-27, Decreto 9.603/18).
A inobservância do procedimento do Depoimento Especial, isto é, a oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência sem observância dos requisitos do art. 12 da Lei 13.431/2017, constitui vício processual. O qual deve ensejar nulidade relativa. A distinção entre nulidade absoluta e nulidade relativa no processo penal fundamenta-se em critérios constitucionais e legais. A divisão doutrinária comum é entre nulidades relativas e absolutas. Quanto a absoluta temos que:
Decorre da violação de interesse processual de ordem pública. Tamanho o vício, que não haverá preclusão para a alegação desta matéria. Mesmo após o trânsito em julgado, pode ser alegada a existência de nulidade absoluta por meio de revisão criminal ou de habeas corpus (Dezem, 2021).
Da nulidade absoluta decorre o prejuízo presumido, pois é gestado da inobservância da norma. Quanto a nulidade relativa, para que seja declarada, é necessária a arguição em momento oportuno e a demonstração do prejuízo. Conforme leciona Dezem (2021), a nulidade relativa decorre da violação de interesse eminentemente privado, exigindo que a parte demonstre o efetivo prejuízo processual para seu reconhecimento. O autor ressalta que, caso não seja arguida no momento oportuno, ocorrerá preclusão, impossibilitando sua alegação em momento posterior.
Não basta a simples alegação de que o procedimento legal não foi seguido. A parte que alega a nulidade, é necessário demonstrar de forma concreta qual foi o prejuízo causado. Este é o princípio do pas de nullité sans grief (não há nulidade sem prejuízo), consagrado no art. 563 do Código de Processo Penal.
O prejuízo pode se manifestar, por exemplo, se for demonstrado que a forma como a criança ou adolescente foi ouvida a constrangeu, intimidou ou influenciou suas respostas, comprometendo a credibilidade da prova e, consequentemente, prejudicando o direito de defesa. Como nulidade relativa, a inobservância do procedimento do DE não é reconhecida de ofício pelo juiz, e não é declarada automaticamente. A parte, deve arguir a nulidade no momento processual oportuno e demonstrar o prejuízo concreto decorrente do vício (art. 563, CPP; art. 571, CPP). Se a nulidade for declarada, o ato viciado (a oitiva) deve ser anulado
2.3 A problemática da irrepetibilidade e a produção antecipada de prova
A regra da irrepetibilidade, consubstanciada no art. 11, §2º, da Lei nº 13.431/2017, institui uma limitação inédita no processo penal brasileiro: a determinação de que a oitiva de crianças e adolescentes ocorra, via de regra, uma única vez. A norma possui clara teleologia protetiva, visando evitar a revitimização decorrente da sucessão de depoimentos nas diversas fases da persecução. Seja na etapa policial, na instrução processual ou em eventual fase recursal (CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO, 2024)
2.3.1 Preclusão probatória e contraditório diferido
Se o DE é realizado uma única vez, em momento processual precoce, o contraditório é necessariamente diferido.
Como se demonstrou, o depoimento especial realizado na fase investigativa permite o contraditório diferido e se justifica pela indispensabilidade da sua realização, ainda que na ausência do suspeito e de seu defensor, desde que comprovados o periculum in mora e o fumus boni juris (Madeira, 2022).
Ainda que a defesa seja intimada, o grau de conhecimento dos fatos e de preparação defensiva é, naturalmente, inferior ao que seria em uma instrução penal ordinária.
A doutrina processual penal tradicional sustenta que a produção antecipada de prova, desde que realizada com respeito ao contraditório, é constitucionalmente válida, pois o contraditório, nesses casos, é diferido. O art. 156, I, do CPP autoriza expressamente o juiz a determinar, de ofício, antes de iniciada a ação penal, "a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida" (BRASIL, 1941).
No entanto, parte da doutrina garantista critica essa prática, argumentando que:
Com a inserção do art. 3º-A no CPP, pela Lei n. 13.964/2019, o sistema acusatório foi erigido a princípio fundamental do processo penal brasileiro, vedando-se expressamente ao juiz substituir a atuação probatória do órgão de acusação. Logo, a iniciativa probatória do juiz, prevista no art. 156, I, do CPP, é com ele absolutamente incompatível, por violar a imparcialidade e a estrutura dialética do processo, devendo ser considerada tacitamente revogada (Lopes Júnior, 2020, p. 335).
Contudo a jurisprudência entende que "O fato de a defesa não ter participado diretamente do depoimento especial igualmente não caracteriza óbice ao exercício do contraditório e da ampla defesa, vez que, em situações como essas, nas quais a prova é antecipadamente produzida e não repetida em juízo, materializa-se o que, doutrinariamente, se intitula "contraditório diferido; postergado; adiado" (Tribunal de Justiça de São Paulo TJ-SP - Apelação Criminal: 1502621-71.2022.8.26.0438)
2.3.2 Impacto da irrepetibilidade na reavaliação da prova
Se o DE foi realizado uma única vez, e a gravação audiovisual foi juntada aos autos, o Tribunal, em sede de apelação, não pode determinar a realização de novo DE, salvo se demonstrada a imprescindibilidade e houver concordância da vítima/testemunha — art. 11, §2º, Lei 13.431/17)[2].
Essa limitação reforça a importância da qualidade técnica do DE realizado[3]. Se o profissional que conduziu o DE cometeu erros técnicos, ou se o juiz de primeiro grau deferiu perguntas inadequadas formuladas pelas partes, a prova estará irremediavelmente contaminada, com mínima ou quase nenhuma possibilidade de repetição.
2.4 A busca de outras provas (art. 22, lei 13.431/17) e seus limites práticos
O artigo 22 da Lei 13.431/2017 estabelece que:
As autoridades responsáveis pela investigação e pela ação penal envidarão esforços investigativos para que o depoimento especial não seja o único meio de prova, devendo acompanhar outros elementos de convicção, conforme o caso. (BRASIL, 2017, grifo nosso).
O artigo 22 sintetiza o esforço legislativo de equilibrar a balança penal. A diretriz para que o Depoimento Especial não figure como meio exclusivo de prova sinaliza não apenas a cautela quanto à suficiência probatória da palavra da vítima, mas, sobretudo, a responsabilidade do Estado na condução da investigação. Busca-se, assim, retirar dos ombros da criança ou adolescente o peso exclusivo da responsabilização do agressor. Todavia, a aplicação prática desse ideal de "esforço investigativo" confronta-se com a realidade da ausência de vestígios na maioria dos casos.
2.4.1 Quais são as "outras provas" possíveis em crimes sexuais contra vulneráveis?
Conforme exposto em seção anterior, crimes sexuais contra vulneráveis frequentemente não deixam vestígios físicos duradouros e não têm testemunhas oculares. Quais provas, então, podem ser buscadas para corroborar a palavra da vítima (via DE) ou, no limite, substituí-la?
No que tange à prova pericial, o exame de corpo de delito enfrenta limitações intrínsecas. Conforme exposto, o laudo resta frequentemente inconclusivo, especialmente em atos libidinosos diversos da conjunção carnal ou quando há lapso temporal significativo entre o fato e a perícia. Sua relevância, contudo, é inegável: quando positivo, constitui prova material robusta; quando negativo, não afasta a materialidade delitiva. Nesses casos, aplica-se a inteligência do art. 167 do Código de Processo Penal, onde diz que "não sendo possível o exame por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta" (BRASIL, 1941).
Complementarmente, a prova documental, consubstanciada em registros médicos, escolares, laudos psicológicos e fichas de atendimento da rede de proteção, atua como elemento indiciário. Embora sejam provas indiretas que não comprovam a materialidade per se, são fundamentais para demonstrar um contexto compatível com o abuso, revelar impactos psicológicos e documentar revelações anteriores.
Destaca-se também a prova testemunhal indireta, composta por depoimentos de familiares, professores e profissionais de saúde que acolheram a revelação espontânea da vítima ou presenciaram mudanças comportamentais. Ainda que não tenham presenciado o ato sexual (testemunhas de auditu), tais relatos possuem força probante para corroborar a palavra da vítima e conferir verossimilhança à acusação.
Cumpre-se observar o que sinaliza a doutrina sobre esse tipo de prova:
A testemunha de ‘ouvir dizer’ (hearsay testimony) é aquela que não presenciou o fato e apenas transmite o que lhe foi dito por outra pessoa. Em geral, seu valor probatório é baixíssimo, pois, além de ser um depoimento de segunda mão, não permite que a defesa exerça sobre a fonte da informação o salutar contraditório. Contudo, não se pode negar que pode servir como prova corroboradora, especialmente quando se trata de declarações espontâneas da vítima a pessoas de sua confiança logo após o evento traumático (Lopes Jr., 2020, p. 396).
Adicionalmente, ganha relevo a prova material digital, compreendendo mensagens eletrônicas trocadas entre as partes, imagens, vídeos armazenados em dispositivos do agressor e histórico de navegação. Quando existente, constitui prova direta e robusta, embora sua obtenção não seja possível em muitos casos.
Quanto à confissão do réu, trata-se de prova direta de autoria, porém de ocorrência extremamente rara em crimes sexuais contra vulneráveis. Ressalte-se que, mesmo quando o acusado confessa, a admissão dos fatos frequentemente se dá de forma parcial ou minimizadora.
Por fim, admite-se a utilização de prova emprestada, consistente em depoimentos ou documentos produzidos em outros processos envolvendo as mesmas partes. Sua validade, contudo, depende de autorização judicial, estrita observância do contraditório e demonstração de pertinência temática.
2.4.2 O paradoxo do art. 22: dever de buscar provas que, frequentemente, não existem
O art. 22, ao impor o dever de "envidar esforços investigativos", pressupõe que existam outras provas a serem buscadas. No entanto, a natureza do crime sexual contra vulnerável, conforme extensivamente exposto, é tal que, em muitos casos, não há outras provas materiais ou testemunhais diretas disponíveis. O que fazer, nesses casos?
O dispositivo impõe um dever de diligência ao Ministério Público e à autoridade policial e, subsidiariamente, ao juiz (art. 156, CPP). Devem esgotar as possibilidades investigativas. Mas, se, após esgotadas essas diligências, restar apenas a palavra da vítima (via DE), essa prova pode fundamentar a condenação, desde que seja firme, coerente, harmônica com as demais circunstâncias dos autos, e não contraditada por outras provas robustas, como sinalizado em item anterior.
Interpretar o art. 22 no sentido de que a ausência de outras provas impede a condenação seria esvaziar a eficácia da persecução penal de crimes sexuais contra vulneráveis, gerando impunidade sistemática, o que contraria a finalidade protetiva da Lei 13.431/17 e os deveres constitucionais de proteção à infância (art. 227, CF/88) e de punição de crimes graves (art. 144, CRFB/88).
2.5 Jurisprudência dos tribunais superiores: súmula 593/STJ e a palavra da vítima
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) consolidou, ao longo das últimas décadas, entendimentos relevantes sobre a prova em crimes sexuais, especialmente envolvendo vítimas vulneráveis.
2.5.1 Súmula 593/STJ: presunção absoluta de vulnerabilidade
Essa Súmula consagra a presunção absoluta de vulnerabilidade para menores de 14 anos (art. 217-A, CP). Significa que, para a configuração do tipo penal, é irrelevante: O consentimento da vítima, pois a criança/adolescente menor de 14 anos não possui capacidade jurídica para consentir em ato sexual; A experiência sexual anterior da vítima, ainda que a vítima já tenha mantido relações sexuais com terceiros, isso não afasta a vulnerabilidade; A existência de namoro ou relacionamento amoroso com o agressor[4]. A Lei n. 13.718 de 2018, seguiu a Súmula 593 do STJ de 2017, reforçando a não isenção de pena.
A Súmula 593 tem impacto direto sobre a estratégia defensiva em crimes de estupro de vulnerável. Teses defensivas baseadas em consentimento, provocação da vítima, experiência sexual anterior, namoro, são juridicamente inviáveis à luz da Súmula 593. Resta à defesa, portanto, explorar as teses absolutórias clássicas: a negativa de autoria e a inexistência do fato. No plano processual, a estratégia consiste em impugnar a validade do Depoimento Especial apontando eventuais nulidades ou, ainda, demonstrar a fragilidade do arcabouço probatório, pugnando pela absolvição com fulcro na dúvida razoável (in dubio pro reo).
2.5.1.1 Palavra da vítima: especial relevância, mas não prova tarifada
É pacífico o entendimento do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que, nos crimes contra a liberdade sexual, a palavra da vítima assume especial relevância probatória. Tal posicionamento fundamenta-se na natureza clandestina dessas infrações, cometidas majoritariamente à revelia de testemunhas oculares. Desse modo, o relato da ofendida não pode ser desconsiderado, notadamente quando corroborado por outros elementos de convicção, conforme reiterado no julgamento do AgRg no AREsp 1.994.996/TO e em diversos outros precedentes da Corte[5].
Dessa orientação jurisprudencial, extraem-se vetores fundamentais para a valoração da palavra da vítima. Primeiramente, reconhece-se a especial relevância da palavra da vítima, conferindo-lhe peso probatório diferenciado em razão da clandestinidade intrínseca ao delito sexual. Tal característica permite que o relato da ofendida, mesmo quando constitua o único elemento direto de prova, enseje a condenação, desde que se revista de credibilidade.
Todavia, essa suficiência probatória não é automática. A jurisprudência impõe rígidos standards de qualidade, exigindo que o depoimento apresente: (i) firmeza, caracterizada pela segurança e ausência de hesitações excessivas; (ii) coerência interna, com uma narrativa lógica e livre de contradições graves; e (iii) harmonia externa, devendo o relato ser compatível com o restante do contexto probatório.
Por fim, ressalte-se que não se trata de prova tarifada. O valor da palavra da vítima não é absoluto ou pré-fixado em lei. Cabe ao magistrado valorá-la à luz do princípio do livre convencimento motivado (art. 155, CPP), fundamentando racionalmente a credibilidade atribuída ao depoimento frente às demais provas.
2.5.2 Retratação da vítima: valoração pelo juiz
Em casos de retratação, a jurisprudência do STJ[6] orienta que o juiz deve valorar qual dos relatos merece maior credibilidade, considerando as circunstâncias do caso concreto. Os tribunais avaliam a retratação com especial cautela, considerando a possibilidade de que a vítima esteja sendo coagida, ameaçada ou manipulada pelo agressor ou por familiares para mudar seu depoimento.
Para decidir sobre a manutenção da condenação ou a absolvição, o juiz analisará a consistência da primeira declaração. Se o relato inicial da vítima foi rico em detalhes, coerente e corroborado por outras provas, as circunstâncias da retratação e o confronto com outras provas. Se o conjunto probatório inicial for robusto e a retratação se apresentar frágil e isolada, a tendência é que a condenação seja mantida[7].
3. Considerações Finais
O enfrentamento do problema de pesquisa revelou que a aparente colisão entre a eficiência da persecução penal e a proteção da infância pode ser solucionada através de rigor técnico e procedimental. Diante do exposto, apresenta-se a síntese conclusiva sobre os limites e possibilidades da Lei nº 13.431/2017.
A conciliação entre a produção probatória e a proteção integral não configura uma antinomia insuperável, mas uma tensão dialética que exige interpretação sistemática. Impõe-se a aplicação ponderada dos princípios constitucionais da proteção integral (art. 227, CF/88) e do devido processo legal (art. 5º, LV, CF/88), em harmonia com as normas processuais penais, à luz da Lei nº 13.431/2017.
Ressalte-se que a referida legislação não vedou a oitiva de crianças e adolescentes, tampouco a tornou medida excepcional. O que se estabeleceu foi a exigência de um rigor procedimental específico, o Depoimento Especial, visando evitar a revitimização, aliado ao dever do sistema de justiça de envidar esforços investigativos para que a palavra da vítima não figure como meio exclusivo de prova (art. 22). Conclui-se, portanto, que o Depoimento Especial constitui meio de prova lícito, válido e constitucionalmente conforme, desde que observado estritamente o rito legal (art. 12, Lei 13.431/17; arts. 20-27, Decreto 9.603/18). A inquirição realizada sob tais moldes não viola, per se, a proteção integral; ao contrário, o instituto opera como instrumento de conciliação, permitindo a coleta da prova de forma humanizada e menos traumática que o método tradicional.
Ademais, a norma impõe o esgotamento das possibilidades investigativas pelos órgãos de persecução penal. Entretanto, a eventual inexistência de outras provas não pode conduzir à absolvição automática. A palavra da vítima, quando obtida com rigor técnico (DE) e revestida de coerência, é suficiente para o decreto condenatório. Entendimento diverso transformaria o art. 22 em instrumento de impunidade para crimes praticados na clandestinidade, subvertendo a lógica de proteção integral que orienta o diploma legal.
Embora a regra da irrepetibilidade (art. 11, §2º) vise mitigar a revitimização, ela não impõe um óbice absoluto à realização do ato quando este se mostrar necessário. Cabe à autoridade competente avaliar, no caso concreto, a imprescindibilidade do Depoimento Especial, guiando-se por três vetores fundamentais.
O primeiro é a existência de revelação espontânea anterior. Se a vítima já relatou os fatos de forma detalhada e tal relato foi devidamente documentado e judicializado, esvazia-se a necessidade de nova oitiva, mormente se houver provas corroborantes, em homenagem ao art. 22 da Lei nº 13.431/2017[8].
O segundo vetor refere-se à condição biopsicológica da vítima. Em casos envolvendo crianças de tenra idade (menores de sete anos) ou vítimas com deficiência e trauma agudo, a insistência na oitiva pode gerar risco de descompensação emocional grave. Nesses cenários, impõe-se a aplicação do princípio da proporcionalidade, sopesando-se a necessidade probatória frente ao dano potencial à integridade psíquica.
Assim, considera-se a gravidade do delito. Crimes de alto potencial ofensivo podem justificar, proporcionalmente, uma maior necessidade de produção de prova oral, ainda que sob risco controlado de revitimização, visto que a impunidade de infrações graves também constitui forma de violência institucional e insegurança social
A palavra da vítima no DE, embora relevante, submete-se ao livre convencimento motivado. Sua aptidão condenatória depende de firmeza e coerência; na dúvida, prevalece a absolvição (art. 386, VII, CPP). Igual cautela aplica-se à retratação, que não invalida automaticamente o relato inicial se este for robusto e corroborado. Validada a produção antecipada pelo contraditório diferido, conclui-se que a realização do DE não é automática, mas depende de decisão que pondere necessidade e proporcionalidade. Preenchidos tais requisitos, o rito torna-se impositivo.
Por fim, é imperioso reiterar que a Escuta Especializada, realizada pela rede de proteção, não possui função probatória, nos termos do art. 19, §4º, do Decreto nº 9.603/2018. Embora gere subsídios informativos compartilháveis com o sistema de justiça (art. 13, Lei 13.431/17), ela não substitui o Depoimento Especial quando a prova judicial se faz necessária. A confusão entre esses institutos representa um equívoco técnico grave, capaz de gerar, simultaneamente, revitimização e anomia probatória.
Conclui-se que a Lei nº 13.431/2017 oferece o instrumental normativo adequado para conciliar prova e proteção. Contudo, sua efetividade concreta depende de fatores extrajurídicos: a capacitação técnica continuada, a compreensão das distinções conceituais, o esforço investigativo para romper a dependência da prova oral e a interpretação sistemática do ordenamento à luz da Constituição e do ECA
Nem impunidade, nem revitimização. A via intermediária, qual seja a justiça sem revitimização, é possível, desde que os operadores do Direito e a rede de proteção atuem com rigor técnico, sensibilidade humana e compromisso ético irrenunciáveis com a dignidade da criança e do adolescente.
Referências
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. Acesso em: nov. 2025.
BRASIL. Decreto nº 9.603, de 10 de dezembro de 2018. Regulamenta a Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 dez. 2018. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/d9603.htm. Acesso em: nov. 2025.
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BRASIL. Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017. Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 abr. 2017. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13431.htm. Acesso em: nov. 2025.
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[1]Bacharel em Direito pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Tecnólogo em Perícia e Investigação Criminal pela Anhanguera, Pós-graduado em Direito Público Licitatório pela Faculdade Focus. Email: alanfsantos.adv@gmail.com
[2]Superior Tribunal de Justiça STJ - AGRAVO REGIMENTAL NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO HABEAS CORPUS: AgRg nos EDcl no HC 765562 SP 2022/0263515-7.
[3]A produção de prova não prejudicará o andamento do processo, nem poderá ser adiada para data posterior à audiência de instrução e julgamento, salvo se justificada a necessidade da medida.
[4]Cumpre destacar que a jurisprudência recente do STJ tem dado importante relevo a "constituição de família", considerando erro de proibição e inexistência de efetiva ofensa ao bem jurídico tutelado. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2025/06102025-Para-Quinta-Turma--erro-de-proibicao-afasta-estupro-de-vulneravel-em-caso-de-relacao-amorosa-com-menor.aspx#:~:text=Erro%20de%20proibi%C3%A7%C3%A3o%20afasta%20estupro%20de%20vulner%C3%A1vel%20em%20rela%C3%A7%C3%A3o%20com%20menor. Acesso em: nov. 2025.
[5]STJ - AgRg no HC 854563 RO 2023/0333779-6; STJ - AgRg no HC 763553 SP 2022/0252874-1; STJ - AgRg no AREsp 2317583 SP - Publicado em 13/03/2024; STJ - AgRg no AREsp 2274084 MG - Publicado em 18/08/2023.
[6]STJ - Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial: AgRg no AREsp 2613767 MS 2024/0138288-3
[7]STJ - AgRg no HC 935574 SP - Publicado em 18/09/2024.
[8]Essa cautela decisória encontra respaldo, inclusive, nas diretrizes do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).