Adentrando na Educação a Distância: dilemas, limites e abrangências na era tecnológica
Adentrando na Educação a Distância: dilemas, limites e abrangência na era tecnológica
Leandro Petarnella[1]
Izaque Pereira de Souza [2]
Edman Altheman[3]
RESUMO: A Educação a Distância (EaD) desempenha um papel estratégico na ampliação do acesso ao ensino superior no Brasil, sobretudo diante das limitações geográficas e socioeconômicas enfrentadas por grande parte da população. A promulgação do Decreto nº 12.456/2025, que institui a Nova Política de Educação a Distância, marca uma nova fase na regulação dessa modalidade, estabelecendo critérios mais rigorosos quanto à carga horária presencial, avaliações, mediação pedagógica e limitações para determinados cursos. Esse novo marco normativo levanta importantes dilemas sobre a qualidade da formação, a exclusão digital e a padronização dos modelos educacionais em contextos tecnologicamente mediados. Em função disso, O presente ensaio teórico foi motivado pela vivência docente em cursos EaD e pela necessidade concreta de compreender como o novo marco regulatório impacta diretamente a rotina de instituições, educadores e estudantes. Para tanto, considera o Decreto nº 12.456/2025 para estabelecer um diálogo com os trabalhos de Byung-Chul Han, Yuk Hui e Luciano Floridi, enquanto subsídios para uma análise crítica da EaD diante do avanço da racionalidade técnica no campo educacional. Como conclusão afirma que, embora o novo marco regulatório represente um avanço ao estabelecer padrões mínimos de qualidade e supervisão, ele ainda não resolve integralmente os desafios estruturais da EaD no Brasil, já que a modalidade deve ser compreendida a partir da incorporação de práticas pedagógicas críticas, formações docentes qualificadas e políticas que reconheçam as especificidades culturais e regionais dos estudantes.
PALAVRAS-CHAVE: Educação a distância; Marco regulatório; Democratização do ensino.
1. Um Dilema como Introdução: no Brasil, o que marca o novo marco?
A Educação a Distância (EaD) tem se consolidado como uma das principais modalidades de oferta de ensino superior no Brasil, especialmente após a intensificação do uso de tecnologias digitais e a reestruturação das políticas públicas voltadas à expansão do acesso. A partir da promulgação do Decreto nº 12.456, de 19 de maio de 2025, estabeleceu-se um novo marco regulatório para a EaD no país, reconfigurando não apenas a forma como os cursos são estruturados e ofertados, mas também as concepções sobre a própria natureza da educação mediada por tecnologias.
Nesse cenário, os dilemas educacionais se tornam cada vez mais complexos, exigindo não apenas uma leitura técnica e normativa, mas também uma análise crítica e, ao mesmo tempo, profunda acerca dos sentidos, dos limites e das possibilidades da EaD em tempos de acelerada virtualização da vida. Enquanto exemplo, a inovação tem sido amplamente celebrada como palavra de ordem na educação contemporânea. Entretanto, os “princípios fundamentais da inovação” nem sempre são explicitados ou problematizados em sua profundidade filosófica e política. Aliás, em muitos discursos institucionais, inovar se resume à adoção de tecnologias digitais, à automação de processos pedagógicos ou à introdução de métricas para avaliação do desempenho docente e discente.
Nestes discursos, soma-se, ainda, a necessidade de se apresentar as práticas exitosas que, na maioria das vezes, está relacionada ao contexto no qual a regulação da educação no país se vincula e não, necessariamente, aos resultados que as referidas práticas estabelecem com a educação. Práticas exitosas, nesse contexto, tornam-se sinônimo de eficiência e escalabilidade. Essa crítica ganha ainda mais densidade quando situada no contexto da Educação a Distância (EaD), sob a ótica da reorganização direcionada pelo Decreto nº 12.456/2025.
O Decreto nº 12.456/2025 traz considerações contundentes. Esse novo marco regulatório tenta reequilibrar expansão e qualidade, impondo exigências como atividades síncronas, avaliações presenciais e limitação da oferta em áreas sensíveis como saúde, direito e licenciaturas. A medida reconhece, de forma implícita, que a EaD não pode ser reduzida a um canal de transmissão de conteúdos nem operada por lógicas exclusivamente mercadológicas. Contudo, apesar da tentativa de corrigir distorções, ainda permanece o desafio central: como reinventar a educação mediada por tecnologia sem sucumbir à sua padronização instrumental? No que se traduz o êxito no contexto da EaD? Quais são os princípios fundamentais da inovação na/para educação? Para responder a estas questões iniciemos, então, com a compreensão da nova regulamentação.
O novo marco da EaD no Brasil, ao definir três categorias formais de cursos superiores – presencial, semipresencial e a distância –, impõe novos critérios para a definição de carga horária, momentos presenciais obrigatórios e a responsabilidade institucional sobre a qualidade da oferta educacional. Aliás, entre as principais mudanças introduzidas pelo Decreto nº 12.456/2025, destacam-se a exigência de ao menos 20% de atividades presenciais ou síncronas nos cursos a distância, a obrigatoriedade de avaliações presenciais em todos os ciclos formativos e a proibição da modalidade EaD para cursos de Medicina, Direito, Odontologia, Enfermagem, Psicologia, entre outros (BRASIL, 2025).
Tal reconfiguração normativa visa enfrentar os desafios relacionados à precarização de algumas ofertas educacionais, à dificuldade de controle de qualidade e à evasão em massa em determinados contextos. No entanto, essas medidas também suscitam debates acerca da acessibilidade, da autonomia pedagógica das instituições e da flexibilidade das trajetórias formativas, especialmente para populações que historicamente enfrentam barreiras de acesso ao ensino superior presencial. Mesmo porque, se por um lado, o Decreto nº 12.456/2025 representa um importante avanço na tentativa de equilibrar expansão, qualidade e regulação dessa modalidade educacional. Por outro, suscita uma série de dilemas, especialmente quando se analisam seus impactos práticos sobre as instituições de ensino superior, os estudantes e os próprios fundamentos pedagógicos da EaD.
Ao mesmo tempo no qual o decreto promove maior clareza sobre a diferenciação entre cursos presenciais, semipresenciais e a distância estabelecendo, inclusive, percentuais mínimos e máximos para carga presencial (como os 70% obrigatórios para cursos tradicionalmente presenciais e os 10% obrigatórios para cursos EaD), ele também traz em seu bojo a restrição da criatividade pedagógica e a possibilidade de adoção de modelos híbridos mais flexíveis, que poderiam ser mais adequados a determinadas realidades sociais e regionais. É claro que não se trata aqui de minimizar uma preocupação legítima com a qualidade da formação prática e a segurança dos futuros profissionais, mas, sim, de refletir como a adoção deste modelo impede a ampliação do acesso ao ensino superior para populações em regiões remotas ou em situação de vulnerabilidade.
Isto implica em dizer, ainda, que se por um lado o decreto exige a existência de infraestrutura mínima nos polos EaD (incluindo laboratórios, tutoria, acesso à internet e ambientes físicos adequados), bem como proíbe o compartilhamento de polos entre instituições, garantindo identidade institucional e melhores condições de aprendizagem para os alunos, por outro lado essa exigência representa um obstáculo financeiro significativo para instituições menores ou em expansão. A dificuldade em manter polos com toda a infraestrutura necessária pode levar à concentração de oferta em regiões já atendidas, acentuando desigualdades regionais no acesso à educação superior. Ainda: os dilemas que emergem do Decreto nº 12.456/2025 revelam a tentativa de equilibrar qualidade, credibilidade e expansão da EaD em um cenário de forte crescimento e também de críticas à sua condução desregulada nos últimos anos.
O desafio aqui posto está em não comprometer os avanços sociais e de inclusão proporcionados pela modalidade, ao mesmo tempo em que se enfrenta o imperativo da regulação responsável e da qualidade acadêmica. O futuro da EaD no Brasil dependerá, portanto, da capacidade das instituições e do próprio Estado de dialogarem com esses dilemas, criando soluções que considerem a diversidade do país e os múltiplos perfis de seus estudantes. Em decorrência disso, uma outra questão que se coloca é: como a Educação a Distância, em meio ao novo marco regulatório e à hegemonia das tecnologias digitais, pode assegurar uma formação crítica, ética e comprometida com a qualidade educacional? A essa pergunta somam-se outros dilemas importantes, tais como: até que ponto a regulação consegue conter a mercantilização da educação sem inviabilizar o acesso? Como garantir o equilíbrio entre a autonomia do estudante e a mediação pedagógica efetiva? Quais são os riscos de se padronizar modelos de ensino em contextos culturalmente diversos?
Refletir sobre estes dilemas se torna tão importante quanto necessário. Em função disso, a relevância da presente discussão reside na necessidade urgente de se compreender os impactos concretos da regulação da EaD sobre as práticas pedagógicas, a formação docente e a experiência dos estudantes em contextos altamente digitalizados e, fundamentalmente, qual é a necessidade ou a consequência da inovação, haja vista da possibilidade de seus riscos e, também, o que se compreende como um processo exitoso neste quesito. Para tanto, recorre-se aos aportes teóricos de autores como Byung-Chul Han, Yuk Hui e Luciano Floridi para estabelecermos diferentes olhares sobre os efeitos da tecnologia na constituição dos sujeitos, nas formas de interação e na construção de saberes para, posteriormente, revisitarmos os dilemas aqui colocados.
2. A abrangência da era tecnológica: educação, cultura e cansaço
Vivemos um tempo marcado por um paradoxo profundo: nunca estivemos tão conectados, e, ao mesmo tempo, tão esgotados. No centro dessa tensão está a educação – não apenas como um dispositivo institucional, mas como um campo de formação humana, cultural e subjetiva. A cultura digital, com suas promessas de autonomia, instantaneidade e acesso irrestrito ao conhecimento, transformou radicalmente os modos de aprender, ensinar e existir. No entanto, sob a superfície de discursos sobre inovação e flexibilidade, emerge uma realidade inquietante: a formação educacional parece cada vez mais absorvida pela lógica do desempenho, da produtividade e da autoexploração.
É nesse contexto que o Decreto nº 12.456/2025, novo marco regulatório da Educação a Distância no Brasil, se insere. Em tese, trata-se de uma tentativa de disciplinar um cenário marcado pela expansão descontrolada da EaD, trazendo parâmetros de qualidade, limites para o uso de tecnologias, e exigências mínimas para a presença física e interação humana. No entanto, ao mesmo tempo em que o decreto busca corrigir distorções, ele também revela e acentua algumas das tensões centrais da contemporaneidade.
Ao reforçar a obrigatoriedade de momentos presenciais, avaliações escritas e limites para a carga horária remota, o decreto parece tentar reverter a tendência de completa virtualização da educação e resgatar aspectos formativos que exigem o contato, o corpo, o tempo compartilhado. Todavia, ao manter o foco excessivo em critérios técnicos e operacionais — como infraestrutura de polos, padronização de plataformas e centralidade na autoaprendizagem —, a regulação ainda se inscreve, em grande medida, na mesma lógica produtivista e performativa que marca a cultura digital contemporânea.
A promessa de autonomia, tão celebrada na EaD, é mantida no texto legal, mas sem uma problematização mais profunda sobre o que significa autonomia em uma sociedade do cansaço, como diagnosticada por Han (2015). A rigor, em nome da liberdade de aprender "quando e onde quiser", impõe-se ao estudante uma carga de responsabilidade desproporcional, frequentemente desassistida, autorreferente, gerando não raramente sentimentos de inadequação, fracasso e esgotamento emocional. A subjetividade do estudante é tratada como funcionalidade — alguém que deve adaptar-se à máquina educacional e não o contrário. Neste sentido, o Decreto nº 12.456/2025, portanto, reflete uma ambiguidade característica de nosso tempo: ao mesmo tempo em que tenta reumanizar a EaD e frear suas distorções mercadológicas, o faz sem romper com o modelo dominante de racionalidade instrumental.
A centralidade continua sendo o desempenho mensurável, o controle sobre processos e resultados, a eficiência na entrega de conteúdos. Falta-lhe, talvez, uma dimensão ética, estética e cultural mais profunda — aquela que reconhece o sujeito como um ser em formação, situado em contextos históricos e culturais específicos, e não como um mero executor de tarefas digitais. Em um mundo marcado pela hiperconexão e pela fadiga informacional, Ao vivenciar o cotidiano de alunos que ingressam na EaD sem familiaridade tecnológica ou apoio emocional, percebo que a regulamentação não deve focar apenas na infraestrutura, mas também em aspectos relacionais e humanos do processo educativo.
Mais do que discutir os meios da EaD, é fundamental refletir sobre o que se perde quando a educação ocorre em ambientes onde os alunos não têm espaço para serem ouvidos ou acompanhados de forma próxima. A experiência docente mostra que muitos estudantes se sentem isolados, mesmo quando têm acesso à tecnologia. O decreto, ao tentar normatizar a EaD, oferece uma oportunidade histórica: a de repensar não apenas a modalidade, mas o próprio projeto educativo que queremos sustentar. A pergunta que permanece em aberto é: estamos dispostos a ir além da regulação e enfrentar os dilemas formativos do nosso tempo? Han (2015), fornece uma chave interpretativa fundamental para compreender esse cenário. Em um mundo saturado de estímulos e informações, o sujeito é interpelado não por proibições externas, mas por imperativos internos: “você deve ser produtivo”, “você deve ser visível”, “você deve aprender sozinho”. Mas não se engane: A positividade infinita desses comandos não liberta – adoece.
O esgotamento, a depressão e o burnout não são desvios da norma, mas seus produtos mais evidentes. Na Educação a Distância (EaD), esse modelo se consolida em plataformas que exigem engajamento constante, responsividade imediata e autorregulação contínua. A figura do estudante autônomo pode, nesse contexto, ocultar a supressão do outro e o desaparecimento do espaço de pausa, escuta e elaboração crítica. O estudante torna-se, então, um consumidor de conteúdos fragmentados, filtrados por algoritmos que reforçam bolhas cognitivas e reduzem a complexidade do pensamento. Logo, sob esta perspectiva, cabe-nos refletir sobre o quanto é promissor e, ao mesmo tempo, a que (ou quem) serve as inovações impostas pelo Decreto.
Retomando o pensar sobre o ‘além da regulação”, recorremos aos trabalhos de Hui (2016), para responder à pergunta anteriormente elencada, ou seja, se “estamos dispostos a ir além da regulação e enfrentar os dilemas formativos do nosso tempo?”, já que, para o autor, esta resposta exige mais do que boa vontade política ou técnica: exige uma profunda revisão do modo como concebemos a educação, especialmente no contexto da EaD, agora, regulada pelo Decreto nº 12.456/2025.
Utilizemos o conceito de cosmotécnica, delineado por Hui (2016), para compreender a educação hodierna. Para o autor, a cosmotécnica, se firma na proposta de que a tecnologia não é neutra nem universal, mas sempre está enraizada em uma determinada visão de mundo. Cada sociedade desenvolve suas técnicas com base em seus valores, crenças e formas de compreender a realidade. Assim, não existe uma única tecnologia válida para todos os contextos, mas sim múltiplas formas de articular o fazer técnico com o cosmos cultural, histórico e espiritual de cada povo.
Essa perspectiva critica a imposição global de modelos tecnológicos ocidentais, que privilegiam a eficiência, o controle e a racionalidade instrumental. Quando esses modelos são adotados de forma acrítica, especialmente na educação há o risco de homogeneização cultural e apagamento de saberes locais. A promessa de acesso e autonomia pode se transformar em uma forma sutil de colonização, na medida em que desconsidera os modos próprios de aprender, ensinar e viver de diferentes territórios. Assim, a padronização de formas e métodos como tende a ocorrer com o novo Decreto nº 12.456/2025, tende a desconsiderar a diversidade dos sujeitos, territórios e formas de aprender. Mesmo porque, embora o decreto avance ao regular a EaD e impor critérios mínimos de qualidade, ele ainda opera dentro de uma lógica técnica e uniforme. Falta-lhe sensibilidade para a pluralidade cultural que marca o Brasil.
Se quisermos ir além da regulação, como o próprio decreto propõe implicitamente, é preciso reconhecer que educação é também um projeto cultural. E isso exige modelos pedagógicos que respeitem os saberes locais, os contextos regionais e os modos de existência de quem aprende. Logo, pensar a EaD sob a ótica da cosmotécnica exige, portanto, ir além da eficácia técnica. Significa reconhecer que cada comunidade demanda mediações pedagógicas coerentes com seus ritmos, linguagens e modos de vida. Educação, nesse sentido, não é apenas transmissão de conteúdo, mas um gesto cultural, ético e político que precisa respeitar a pluralidade dos mundos que habitamos.
Todo o dito, implica em considerar que o Decreto nº 12.456/2025, ao centrar-se nos aspectos estruturais e operacionais da EaD, oferece salvaguardas importantes contra abusos mercantilistas e formas degradadas de ensino. Porém, não enfrenta diretamente a crítica central de Hui: a de que, ao não reconhecer a pluralidade de cosmotécnicas — ou seja, de modos locais, históricos e culturais de integrar tecnologia à vida —, o projeto educacional corre o risco de ser colonizador, mesmo quando bem-intencionado. A regulamentação, assim, precisa ser mais do que técnica; precisa ser culturalmente sensível, politicamente consciente e filosoficamente crítica.
A prática em instituições EaD evidencia que qualidade vai muito além dos indicadores. Ela se revela no acolhimento dos estudantes, na adequação das metodologias às realidades locais e na capacidade de formar vínculos pedagógicos duradouros. A regulação é necessária, mas não suficiente. Significa assumir que cada território e cada sujeito demanda modos próprios de presença pedagógica, de mediação tecnológica e de construção de sentido. E que o desafio da EaD no Brasil não é apenas assegurar acesso, mas garantir uma experiência formativa que reconheça e valorize a diversidade das formas de vida. Penso que seria este o caminho para as práticas exitosas educacionais.
Aqui, cabe ressaltar que, práticas exitosas em educação a distância emergem justamente quando políticas e normativas são traduzidas em ações pedagógicas sensíveis ao contexto. Elas não se limitam à aplicação mecânica de diretrizes, mas florescem quando instituições e educadores criam espaços de escuta, inovação e coautoria com os estudantes. São experiências que articulam tecnologias com propósitos formativos, que valorizam a mediação humana, e que se sustentam em metodologias ativas, acessíveis e culturalmente situadas. Nesse sentido, práticas exitosas não são modelos prontos a serem replicados, mas processos construídos com intencionalidade, ética e compromisso com o reconhecimento da pluralidade dos sujeitos e saberes envolvidos.
Se estivermos realmente dispostos a enfrentar os dilemas formativos do nosso tempo, será preciso reimaginar a EaD como um projeto cultural e ético, e não apenas como uma modalidade operacional de ensino. E isso implica revisar criticamente os próprios fundamentos do Decreto nº 12.456/2025: não para negá-lo, mas para alargá-lo, tensioná-lo, colocá-lo em diálogo com a complexidade viva dos territórios, das culturas e das subjetividades que nele se inscrevem. Afinal, regular é apenas um começo; formar, de fato, é sempre um gesto que excede a norma.
3. Práticas exitosas na educação: entre a inovação, a infosfera e os limites da EaD na era tecnológica
O espectro apresentado nas seções anteriores nos levam a intuir o quanto, no contexto contemporâneo da educação a distância, pensar práticas exitosas exige muito mais do que seguir padrões tecnológicos ou indicadores de desempenho. Exige compreender que estamos inseridos em uma infosfera — um ecossistema digital que nos constitui, como propõe Luciano Floridi (2014), e que impacta diretamente a forma como ensinamos, aprendemos e nos relacionamos. A EaD, nesse sentido, não é apenas um canal de mediação técnica, mas um ambiente simbólico e ético, onde se constroem identidades, se disputam valores e se exercem formas de poder. Nesse cenário, práticas educativas bem-sucedidas são aquelas que reconhecem essa complexidade e que se comprometem com a formação crítica, com a escuta ativa e com a construção de sentidos diante do excesso informacional que nos atravessa. Vale ressaltar que Floridi (2014), ao introduzir o conceito de infosfera, afirma que não apenas habitamos o mundo da informação – somos moldados por ele. Em um ambiente educacional totalmente atravessado por redes, algoritmos, bancos de dados e plataformas de vigilância, a EaD torna-se mais que um meio: ela se configura como um espaço ontológico onde sujeitos são constituídos, onde valores são disputados e onde relações de poder são operacionalizadas.
Ensinar e aprender, nesse contexto, é disputar o próprio modo de ser no mundo digital. Não basta, portanto, transmitir conteúdos. É preciso formar para o discernimento, para a crítica e para a reapropriação dos sentidos diante do excesso informacional. A ética da informação, como propõe Floridi (2014), é condição de possibilidade para qualquer projeto educacional verdadeiramente significativo e práticas exitosas, portanto, são aquelas que não apenas utilizam recursos tecnológicos, mas que os ressignificam com intencionalidade pedagógica. Elas integram momentos de presença qualificada — ainda que mediados — e criam oportunidades para o exercício do pensamento autônomo, da ética da informação e da produção colaborativa do conhecimento.
A obrigatoriedade de momentos síncronos e avaliações presenciais, prevista na nova regulação da EaD, pode ser uma tentativa de garantir algum nível de densidade pedagógica, mas só se tornará efetiva se for acompanhada da formação de professores capazes de atuar criticamente nesse ambiente digital. É nesse ponto que a política educacional precisa dialogar com práticas vivas, criativas e territorializadas, capazes de transformar o aparato técnico em instrumento de formação emancipadora.
Nesse cenário, práticas pedagógicas que se pretendem inovadoras e exitosas não podem prescindir de uma leitura crítica da tecnologia. A regulação da EaD que propõe momentos síncronos e avaliações presenciais pode ser interpretada como tentativa de resgatar a mediação humana e a densidade do encontro, mas, por si só, é insuficiente. É necessário perguntar: quem são os professores formados para atuar nesse ecossistema? Com que instrumentos epistemológicos e éticos estão equipados para mediar processos formativos num mundo onde a presença está sempre filtrada por interfaces, métricas e notificações? A sociedade da hiperconexão e da produtividade contínua, como denuncia Han (2015), não apenas afeta o sujeito; ela o esgota. A cultura do desempenho contamina também o campo educacional, que se vê pressionado a produzir “resultados” em ciclos cada vez mais curtos. O que se perde, nesse ritmo, é a escuta, a pausa, o erro criador, a possibilidade do inesperado. Educar nesse contexto exige mais do que atualização tecnológica: exige uma refundação do próprio sentido da formação. Exige, como propõe a filosofia, que se retome a pergunta essencial da educação: o que é formar-se?
As práticas exitosas na educação, se quiserem merecer tal nome, não podem se restringir à adequação a indicadores ou ao uso eficiente de plataformas. Devem ser entendidas como aquelas que conseguem, apesar do ruído do excesso informacional e da pressão da performatividade, abrir espaço para experiências formativas verdadeiras. Isso significa criar ambiências onde o pensamento possa amadurecer, onde o silêncio seja respeitado, onde a diferença não seja eliminada em nome da padronização, e onde o comum seja resgatado como valor educativo.
O desafio contemporâneo, portanto, não é apenas inovar, mas reconfigurar a própria ideia de inovação à luz dos dilemas existenciais da era digital. Trata-se de perguntar: inovação para quê? A favor de quem? Em que direção? Talvez a resposta não esteja em incrementar tecnologias, mas em reaprender a educar com cansaço, como sugere a provocação final do texto de base, acolhendo a vulnerabilidade como força e o limite como lugar de criação.
O Decreto nº 12.456/2025 representa um avanço importante, mas precisa ser tratado como um ponto de partida. Cabe às instituições transformá-lo em práticas concretas, sensíveis às necessidades reais dos estudantes e às limitações operacionais do ensino remoto no Brasil. Seu sucesso dependerá não apenas de seu cumprimento normativo, mas da capacidade das instituições de ensino de superar a dicotomia entre inovação tecnológica e formação humanista. O futuro da EaD, e da educação como um todo, exige uma reinvenção radical que coloque no centro da experiência pedagógica não o controle algorítmico, mas o encontro humano, a ética do cuidado e a potência da escuta. Inovar, nesse sentido, é abrir brechas para o sensível, para o inesperado, para aquilo que não cabe em nenhum dashboard.
4. Rizomando como conclusão
Encerrando este ensaio, gostaria de destacar que não se trata de uma conclusão definitiva, mas de um convite à continuidade do debate. A EaD, em sua complexidade, exige revisões permanentes, escuta ativa e compromisso com o contexto educacional de cada região. A partir da articulação com os pensamentos de Byung-Chul Han, Yuk Hui e Luciano Floridi, e à luz das implicações do Decreto nº 12.456/2025, compreendemos que o direito de inovar na educação não é um privilégio tecnológico, mas uma necessidade ética, cultural e existencial.
Ao articular esses três pensadores, compreendemos que o direito de inovar na educação é inseparável do direito à diferença, à crítica e à ética. Inovar com êxito não é padronizar nem acelerar, mas criar condições para que diferentes modos de saber, ensinar e existir possam florescer. E isso só será possível quando a regulação — como o Decreto nº 12.456/2025 — deixar de ser apenas um instrumento de controle e se tornar também um instrumento de liberdade e pluralidade pedagógica. O verdadeiro êxito na educação não está na eficiência da técnica, mas na capacidade de formar sujeitos em diálogo com sua cultura, seu território e seu tempo.
A principal contribuição do Decreto nº 12.456/2025 não está apenas nas exigências normativas, mas na possibilidade de induzir mudanças pedagógicas mais profundas. Seu impacto real dependerá da forma como as instituições conseguirão adaptar as diretrizes à prática cotidiana, com escuta aos alunos e flexibilidade nos modelos adotados. Inovar com êxito exige abrir brechas no sistema, permitir que a educação se infiltre nos interstícios do digital como raiz subterrânea, como gesto que não se esgota na técnica, mas germina na cultura e floresce no humano.
O direito de inovar, então, é também o direito de formar mundos — não aqueles ditados por algoritmos ou dashboards, mas aqueles que emergem do encontro, da dúvida, da resistência. Durante a pandemia, observei que muitos estudantes relatavam cansaço e desmotivação, mesmo com acesso à tecnologia. Isso reforça a ideia de que educar hoje exige mais do que ‘inovar’: exige escutar o aluno, entender sua realidade e criar sentido a partir daí.
Talvez, por fim, a verdadeira inovação seja reaprender a educar com cansaço, com limite, com lentidão. E talvez o maior êxito da educação na era tecnológica esteja justamente aí: em fazer da diferença, do comum e do sensível, o solo fértil para aquilo que ainda pode florescer.
Todo dito, implica em considerar que inovar na educação não pode ser compreendido apenas como introdução de tecnologias, metodologias ativas ou plataformas digitais. Ao comparar as exigências por produtividade na EaD com os relatos de alunos que trabalham em período integral e estudam à noite, percebo uma relação direta com a crítica de Han (2015) sobre a sociedade do desempenho — onde a autonomia vira sobrecarga. Em vez de libertar, a inovação tecnocrática pode reforçar o cansaço e a sobrecarga. Assim, inovar com êxito exige romper com a lógica produtivista que transforma o sujeito em consumidor de conteúdos e o professor em executor de tarefas algorítmicas. O verdadeiro direito de inovar, nesse sentido, é o direito de resgatar a negatividade criativa, o tempo da pausa, da escuta, do diálogo formativo. Como bem lembra Hui (2016), não é replicar soluções técnicas universais, mas criar formas de ensinar e aprender enraizadas nos contextos históricos e sociais dos sujeitos.
O direito de inovar, então, implica o direito de desenvolver pedagogias locais, plurais, territorializadas — que não se submetam à lógica da homogeneização, mas que expressem cosmovisões distintas e valorizem os saberes de cada comunidade. Aplicado ao Decreto 12.456/2025, isso revela uma tensão: embora o decreto busque organizar a EaD, ele ainda opera sob uma lógica padronizadora. Garantir o direito de inovar nesse contexto significa ampliar o espaço para modelos educacionais diversos, e não apenas regular sua forma. Ainda: devemos nos precaver para que na sociedade do cansaço e diante do esvaziamento da subjetividade, a padronização educacional, mesmo regulada, não se converta em apagamento cultural, já que habitar a infosfera exige mais do que conectividade, exige pensamento crítico, discernimento e formação ética.
Aqui, para definitivamente concluir o que está em jogo é o sentido da formação, a possibilidade de criar ambientes que acolham a pausa, a escuta e a pluralidade. Uma prática exitosa na EaD não reside na eficiência técnica, mas na capacidade de formar sujeitos em diálogo com seus territórios, suas histórias e suas singularidades. Com Floridi (2014): inovar com êxito é preparar sujeitos capazes de compreender, filtrar e produzir informação com responsabilidade e consciência de suas implicações éticas.
5. Referências
BRASIL. Decreto nº 12.456, de 19 de maio de 2025. Institui a Nova Política de Educação a Distância no Ensino Superior. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 20 maio 2025.
FLORIDI, Luciano. The Fourth Revolution: How the infosphere is reshaping human reality. Oxford: Oxford University Press, 2014.
HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
HUI, Yuk. The Question Concerning Technology in China: An Essay in Cosmotechnics. Falmouth: Urbanomic, 2016.
[1] Doutor em Educação e em Adminitração. Professor da Faculdade Focus e da Fatec-SP. E-mail: Leandro.petarnella@faculdadefocus.edu.br
[2] Doutor em Educação. Coordenador dos cursos de Serviços Juridicos e Gestão Pública na Faculdade Focus. Email: izaque.souza@faculdadefocus.edu.br
[3] Edman Altheman. Coordenador dos cursos de Engenharia da Produção e Administração da Faculdade Focus. Professor da FATEC-SP. E-mail: edman.altheman@faculdadefocus.edu.br